Tributo a memoria do meu pai
Prosa & Verso
Por:
Ir. Antonio Iziquiel Martins
Na última segunda-feira, o irmão Jackson, nosso Venerável Mestre, pediu que eu escrevesse uma homenagem aos pais para apresentação na sessão magna de hoje.
Respondi a ele que prepararia um texto, mas confesso que fiquei apreensivo !
Meu pai faleceu a poucos meses e ainda não me recuperei totalmente daquele trauma.
Imaginei na hora “ H ”, não conseguir me expressar, pois comigo, as palavras se afogam nos momentos de grande emoção.
E mais, o que escrever de diferente, se tudo já foi dito e repetido em verso e prosa a respeito da importância dos pais.
Mais tarde, na tranqüilidade do lar, quando o silêncio da noite incita o raciocínio, lembrei-me da máxima cuja profundidade transcende o conhecimento humano que diz : “ nada que acontece nesse mundo é por acaso ”.
Então concluí rapidamente, que era a oportunidade que eu esperava para pagar um tributo à memória do meu pai e, em nome dele, homenagear a todos os pais.
Para tanto, neste exato momento, nos limites da imaginação e como num filme de ficção científica, entro na máquina do tempo e retorno ao passado.
Lá chegando, na minha tenra idade, revejo o meu pai ainda bem conservado, postado junto à porteira do curral, chapéu “ panamá ” na cabeça, atento ao comportamento desassossegado da boiada que acabava de ser presa para algum procedimento de rotina.
O revejo depois, montado numa mula preta enfeitada com argolas reluzentes, laço de couro trançado amarrado junto ao arreio, trazendo o gado pelo caminho sob o som do berrante e de uma fina nuvem de poeira que se misturava com as cores do cerrado.
O revejo também, numa furna no Estado de Minas, depois de cansativa jornada sob sol escaldante, caneca esmaltada na mão bebericando uma cachaça de engenho, a espera do caprichado almoço a ser servido pelo cozinheiro da comitiva.
Nessa época remota, meu pai não utilizava caminhões no transporte do gado, os animais eram conduzidos ao seu destino através de marchas que, dependendo da distância a ser percorrida, duravam muitos dias.
Os peões, eram pessoas destemidas que se submetiam às intempéries da natureza e ao desconforto do lombo da mula para cumprirem a sua missão com o mínimo de incidentes possível.
À noite, antes de adormecerem, se reuniam em volta do fogo e contavam arrepiantes estórias de assombração.
Meu pai e seus peões eram verdadeiros heróis para mim !
Em razão dos seus negócios meu pai viajava muito e, às vezes, me levava com ele. Talvez no intuito de me ensinar que o trabalho é duro porém indispensável, e que um pai, se preciso for, derramará até a última gota de suor do seu extenuado corpo em prol do bem estar dos seus filhos.
Para mim, na ingenuidade infantil, o que realmente interessava não era aprender coisa alguma. Era algo muito mais singelo. Era poder estar junto dele !
Nessas oportunidades, eu aproveitava cada momento. O contato com a natureza era constante, e inevitável seria não apreciar suas maravilhas : o canto triste da seriema, a corrida desembestada da perdiz, a tagarelice das araras, o pio repicado do nhambu, o vôo raso da juriti, a camuflagem do urutau ...
O remanso das veredas, o formato da casca do buriti, o sabor exótico da gabiroba, a sonífera queda d`água, a agilidade da piraputanga ...
Eram momentos muito felizes da minha infância, proporcionados por meu pai !
Pena que eu nunca disse isso a ele.
Pela nossa própria personalidade éramos de poucas palavras um com o outro. Abafamos em nosso íntimo muitos sentimentos que poderiam ter sido externados. Mas isso nunca abalou a admiração que eu tinha por ele.
Apesar de ser ele um homem rude e de pouca escolaridade tinha muita sabedoria e principalmente uma dedicação ilimitada na proteção dos filhos.
Além dos filhos, o que ele realmente gostava era sentir o cheiro da chuva caindo sobre a terra pisada pelo gado, ouvir o sino da mula madrinha guiando a tropa e ver a brutalidade do garrote nelore na hora da lida !
Esse era meu velho pai boiadeiro !
Viveu intensamente cada dia dos noventa e três anos de sua existência !
Já em seu leito de morte, prestes a desencarnar, não sei se por um momento de devaneio, disse que iria viajar, como se os antigos peões já o estivessem esperando para mais uma aventura. Depois de alguns dias ele se foi para sua derradeira e mais importante viagem.
Agora, ele cavalga na imensidão da eternidade, pastoreando o gado muito além das estrelas.
Aquela gratidão que ficou sufocada no fundo do meu ser hoje finalmente eu pude libertar.
Muito obrigado por tudo meu amado pai !!!!
Ir.´. Antonio Iziquiel Martins
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